terça-feira, 1 de julho de 2008

Joao Guimarães Rosa-Ritmos Selvagens


Ritmos Selvagens

O pica-pau, vermelho e verde,
paralelo ao tronco
branco de papel de uma mirtácea,
como um poeta , que desde a madrugada
vem fazendo o retoque de seus versos,
martela o bico , na casca da árvore,
o poema dos índios caipós:

--“Índios escuros, das terras fechadas,
que ninguém pisou,
dos chapadões a meio caminho dos grandes rios,
broncos e brutos, sem arcos nem flechas,
rompem cabeças de missionários a cacetadas,
fazem tremer, fazem correr as outras tribos,
voam no campo atrás dos cascos dos veados,
matam veados só com pauladas,
caiâmu-poguê-dje-ipô!...”

Depois de pendurar num ramo de cajueiro
a casa de cômodos
em cartolina cônica e amarela,
os estúrdios marimbondos-de-chapéu
saem dos alvéolos e fermentam no ar,
num remoinho de ferrões e de asas,
zumbindo o hino dos índios das matas:

--“Bem escondido entre as ramadas da beira d’água,
como curta e grossa jibóia quieta,
toda enroscada nas penas lindas de uma arara
que devorou,
o nhambiquara, de rosto escuro, zingomas pintados
a jenipapo,
fica dez horas, todo encolhido, de bote armado,
os olhos vivos, o arco pronto, muita paciêcia,
e trinta flechas envenenadas ...”

O paturi, no alto,
deixa escapar do bico a piaba,
que desce no ar como uma gota
de mercúrio vivo,
e grasna para a lontra, que avança n’água,
em linha reta, como um torpedo,
noticias novas que trouxe do Xingu:

--“O bacari, belo e tranqüilo,
com o arco vermelho da guarantã,
parece mudo, parece bobo, olhando a água,
e joga a flechada no rio crespo, fisgando o lombo
de um surubi...
E fica triste, e fica bravo, só porque a ponta da flecha
[longa
pegou dois dedos mais pra baixo, no dorso liso do
[peixe de ouro,
que ele nem viu...”

Triste tucano, de bico armado,
descompensado , maior que o corpo,
chega voando e toma de assalto
um dos fortins da terra vermelha
que as térmicas vão escalonando pela campina,
e, bem na grimpa do cocoruto,
desprende a queixa dos índios do sul:

--“Os índios moles , sujos e tristes,
que não têm redes, que falam manso e dormem no
[chão,
e pulam batendo com as mãos nas pernas
[ensangüentadas
das ferroadas das muriçocas,
e cantam semanas , tirando a carne dos esqueletos, o
[bacororo,
grandes batoques nos beiços grossos, sempre tremendo,
pobres bororos,
sentem a onça a três quilômetros, na mata espessa,
bem antes da fera os farejar...”

E o jacaré crespo, de lombo verde, de papo amarelo,
ensina à arara,
toda azul, de patas pretas , de pálpebras pretas,
que ensina o gavião, que passa no vôo, fino e pedrês,
que ensina a um bando, que vai de mudança, de
[maracanãs,
o canto das índias dos carajás:

--“Carajás das praias do Araguaia,
meio vestidas, meio peladas, mal domesticadas,
mulheres roxas, de nariz chato,de pés enormes,
trincando piolho nos dentes brancos,
índias pesadas, quase na hora de dar à luz,
vêm nas pirogas, em troncos bambos, finos , compridos,
com cachos de meninos , curumins vivos, equilibrados,
dependurados,
e as canoinhas passam ,à flor das águas , como coriscos,
à frente dos ventos, batendo piranhas, vencendo asas e
[pensamentos
Araguaia abaixo, do Caiposinho até conceição...”

O dia inteiro, as águas ouviram,
e as matas entenderam,
as vozes que o vento vai levando
para oeste, para longe, para alem de Culuene,
onde o sol se apaga , como a fogueira da última taba,
onde os cocares dos buritis pendem imobilizados,
e o rio marulha a canção dos guerreiros
que vão desaparecer...

João Guimarães Rosa

(Magma – Editora Nova fronteira)

Nenhum comentário: